A saúde, um direito fundamental, deveria ser um espaço de acolhimento e cuidado para todos. No entanto, a realidade em países como o Canadá, e em muitos outros com histórico colonial, revela uma ferida aberta: a persistência do colonialismo nas estruturas de saúde, especialmente na terapia ocupacional. Este artigo explora como essa herança impacta profundamente a vida de terapeutas ocupacionais indígenas e seus pacientes, e o que pode ser feito para construir um futuro mais justo e equitativo.
O Peso da História: Colonialismo e Saúde Indígena
Por séculos, os povos indígenas foram submetidos a políticas de assimilação forçada, que visavam apagar suas culturas, línguas e práticas tradicionais. Na área da saúde, isso se traduziu na imposição de um modelo ocidental, desconsiderando os conhecimentos ancestrais e as necessidades específicas dessas comunidades.
Como resultado, o sistema de saúde canadense, embora universal, muitas vezes falha em atender às demandas dos povos indígenas. A falta de representatividade, o racismo estrutural e a desconfiança em relação aos serviços são apenas alguns dos obstáculos que enfrentam.
Terapeutas Ocupacionais Indígenas: Navegando Entre Mundos
Em resposta a essa situação, um número crescente de estudantes indígenas está ingressando em programas de terapia ocupacional. No entanto, essa jornada nem sempre é fácil. Um estudo recente, publicado na revista Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, investigou as experiências de terapeutas ocupacionais indígenas no Canadá e revelou um cenário preocupante.
Os participantes relataram sentimentos de isolamento, falta de apoio e exclusão durante sua formação. Eles se sentiram desvalorizados por suas habilidades e conhecimentos tradicionais, e muitas vezes se viram em conflito com a visão de mundo ocidental predominante nos currículos. A expressão "visões de mundo fragmentadas" resume bem essa experiência de ter que navegar entre dois sistemas de conhecimento distintos, muitas vezes contraditórios.
Imperialismo Cultural: Uma Barreira à Cura
O estudo destaca que essas experiências negativas são sustentadas pelo "imperialismo cultural" presente na profissão. Isso significa que a terapia ocupacional, em sua forma atual, é fortemente influenciada por valores e crenças ocidentais, que muitas vezes são impostos como superiores às práticas indígenas.
Essa imposição cultural pode ter consequências graves para a saúde dos pacientes indígenas. Quando os terapeutas não compreendem ou não valorizam a cultura e as tradições de seus pacientes, a relação terapêutica fica comprometida, e o tratamento pode se tornar ineficaz ou até mesmo prejudicial.
Indigenização Decolonial: Um Caminho para a Reconciliação
Para superar esses desafios, o estudo propõe uma mudança radical: a "indigenização decolonial" da terapia ocupacional. Isso significa ir além da simples inclusão de estudantes indígenas nos programas e promover uma transformação profunda na forma como a profissão é ensinada e praticada.
A indigenização decolonial implica em reconhecer e valorizar os conhecimentos e práticas tradicionais indígenas, integrando-os aos currículos e aos modelos de tratamento. Significa questionar as premissas e os valores ocidentais que sustentam a profissão, e criar um espaço para que as vozes indígenas sejam ouvidas e respeitadas.
Duas Visões, Um Futuro: Etuaptmumk
Um conceito fundamental nesse processo é o "Two-Eyed Seeing" (Etuaptmumk), que se refere à capacidade de ver o mundo através de duas lentes: a lente do conhecimento indígena e a lente do conhecimento ocidental. Ao combinar essas duas perspectivas, podemos construir um futuro mais justo e equitativo para a saúde dos povos indígenas.
A terapia ocupacional, como profissão que busca promover a saúde e o bem-estar através da participação em atividades significativas, tem um papel crucial a desempenhar nesse processo de reconciliação. Ao abraçar a indigenização decolonial e o Two-Eyed Seeing, a profissão pode se tornar um instrumento de cura e empoderamento para as comunidades indígenas.
Este é um chamado urgente para que terapeutas ocupacionais, educadores, pesquisadores e formuladores de políticas se unam nesse esforço. Ao trabalhar juntos, podemos construir um sistema de saúde que verdadeiramente reflita a diversidade e a riqueza cultural do nosso país.
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